Entrevista a António Carlos Jobim, Parte I
"Minhas sinfonias são inéditas."
Tom Jobim e eu já nos conhecíamos: ele foi o meu padrinho no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu livro A maçã no escuro. E ele fazia brincadeiras: segurava o livro na mão e perguntava: quem compra? quem quer comprar? Para este diálogo, marcamos às seis da tarde: às seis e trinta e cinco tocavam a campainha da porta. E era o mesmo Tom que eu conhecia: bonito, simpático, com um ar puro malgré lui, com os cabelos um pouco caídos na testa. Um uísque na mesa e começamos quase que imediatamente a entrevista.
- Como é que você encara o problema da maturidade?
- Tem um verso do Drummond que diz: "A madureza, esta horrível prenda..." Não sei Clarice, a gente fica mais capaz, mas
também mais exigente.
- Não faz mal, Tom, a gente exige bem.
- Com a maturidade, a gente passa a ter consciência de uma série de coisas que antes não tinha, mesmo os instintos os mais espontâneos passam pelo filtro. A polícia do espaço está presente, essa polícia que é a verdadeira polícia da gente. Tenho notado que a música vem mudando com os meios de divulgação, com a preguiça de se ir ao Teatro Municipal. Quero te fazer esta pergunta, Clarice, a respeito da leitura de livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e rádio de pilha, meios inadequados. Tudo o que escrevi de erudito e mais sério fica na gaveta. Que não haja mal-entendido: a música popular considero-a seríssima. Será que hoje em dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto, tendo o hábito de ir para a cama com um livro antes de dormir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo da humanidade - o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que é que você acha?
- Sofro se isso acontecer, que alguém me leia apenas no método do vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção e ternura e dor e pesquisa, e queria de volta, como mínimo, uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu não tenho mais paciência de ler ficção.
- Mas aí você está se negando, Clarice!
- Não, meus livros felizmente para mim não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo. Há quem diga que a música e a literatura vão acabar. Sabe quem disse ? Henry Miller. Não sei se ele queria dizer para já ou para daqui a trezentos ou quinhentos anos. Mas eu acho que nunca acabarão.
Riso feliz de Tom:
- Pois eu, sabe, também acho!
- Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal.
- E mineral também, e vegetal também! (Ele ri.) Acho que sou um músico que acredita em palavras. Li ontem o teu O búfalo e A imitação da rosa.
- Sim, mas é a morte às vezes.
- A morte não existe, Clarice. Tive uma (uma com agá: huma) experiência que me revelou isso. Assim como também não existe o eu nem o euzinho nem o euzão. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte vinte e quatro horas por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.
- Tem alguma coisa além do eu, Tom?
- Além de tudo (ri) e vivam os estudantes! Se eu não defender os estudantes, estou desprotegendo meus filhos. Se esse eco do sucesso não nos interessa em vida, muito menos depois da morte. Isso é o que eu chamo de mortalidade.
- Você acredita na reencarnação, Tom?
- Não sei. Dizem os hindus que só entende de reencarnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. Evidentemente, não é o meu ponto de vista: se existe reencarnação, só pode ser por um despojamento.
Dei-lhe então a epígrafe de um de meus livros: é uma frase de Bernard Berenson, crítico de arte: "Uma vida completa talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não-eu que não resta um eu para morrer."
- Isto é muito bonito, é o despojamento. Caí numa armadilha porque sem o eu, eu me neguei. Se nós negamos qualquer passagem de um eu para outro, o que significa reencarnação, então a estamos negando.
- Não estou entendendo nada do que estamos falando mas faz sentido.
Corcovado
Num cantinho um violão
Este amor, uma canção
Prá fazer feliz a quem se ama
Muita calma prá pensar
E ter tempo prá sonhar
Da janela vê-se o Corcovado
O Redentor, que lindo!
Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama
E eu que era triste
Descrente deste mundo
Ao encontrar você eu conheci
O que é felicidade
Meu amor
"Minhas sinfonias são inéditas."
Tom Jobim e eu já nos conhecíamos: ele foi o meu padrinho no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu livro A maçã no escuro. E ele fazia brincadeiras: segurava o livro na mão e perguntava: quem compra? quem quer comprar? Para este diálogo, marcamos às seis da tarde: às seis e trinta e cinco tocavam a campainha da porta. E era o mesmo Tom que eu conhecia: bonito, simpático, com um ar puro malgré lui, com os cabelos um pouco caídos na testa. Um uísque na mesa e começamos quase que imediatamente a entrevista.
- Como é que você encara o problema da maturidade?
- Tem um verso do Drummond que diz: "A madureza, esta horrível prenda..." Não sei Clarice, a gente fica mais capaz, mas
também mais exigente.
- Não faz mal, Tom, a gente exige bem.
- Com a maturidade, a gente passa a ter consciência de uma série de coisas que antes não tinha, mesmo os instintos os mais espontâneos passam pelo filtro. A polícia do espaço está presente, essa polícia que é a verdadeira polícia da gente. Tenho notado que a música vem mudando com os meios de divulgação, com a preguiça de se ir ao Teatro Municipal. Quero te fazer esta pergunta, Clarice, a respeito da leitura de livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e rádio de pilha, meios inadequados. Tudo o que escrevi de erudito e mais sério fica na gaveta. Que não haja mal-entendido: a música popular considero-a seríssima. Será que hoje em dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto, tendo o hábito de ir para a cama com um livro antes de dormir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo da humanidade - o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que é que você acha?
- Sofro se isso acontecer, que alguém me leia apenas no método do vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção e ternura e dor e pesquisa, e queria de volta, como mínimo, uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu não tenho mais paciência de ler ficção.
- Mas aí você está se negando, Clarice!
- Não, meus livros felizmente para mim não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo. Há quem diga que a música e a literatura vão acabar. Sabe quem disse ? Henry Miller. Não sei se ele queria dizer para já ou para daqui a trezentos ou quinhentos anos. Mas eu acho que nunca acabarão.
Riso feliz de Tom:
- Pois eu, sabe, também acho!
- Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal.
- E mineral também, e vegetal também! (Ele ri.) Acho que sou um músico que acredita em palavras. Li ontem o teu O búfalo e A imitação da rosa.
- Sim, mas é a morte às vezes.
- A morte não existe, Clarice. Tive uma (uma com agá: huma) experiência que me revelou isso. Assim como também não existe o eu nem o euzinho nem o euzão. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte vinte e quatro horas por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.
- Tem alguma coisa além do eu, Tom?
- Além de tudo (ri) e vivam os estudantes! Se eu não defender os estudantes, estou desprotegendo meus filhos. Se esse eco do sucesso não nos interessa em vida, muito menos depois da morte. Isso é o que eu chamo de mortalidade.
- Você acredita na reencarnação, Tom?
- Não sei. Dizem os hindus que só entende de reencarnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. Evidentemente, não é o meu ponto de vista: se existe reencarnação, só pode ser por um despojamento.
Dei-lhe então a epígrafe de um de meus livros: é uma frase de Bernard Berenson, crítico de arte: "Uma vida completa talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não-eu que não resta um eu para morrer."
- Isto é muito bonito, é o despojamento. Caí numa armadilha porque sem o eu, eu me neguei. Se nós negamos qualquer passagem de um eu para outro, o que significa reencarnação, então a estamos negando.
- Não estou entendendo nada do que estamos falando mas faz sentido.
Corcovado
Num cantinho um violão
Este amor, uma canção
Prá fazer feliz a quem se ama
Muita calma prá pensar
E ter tempo prá sonhar
Da janela vê-se o Corcovado
O Redentor, que lindo!
Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama
E eu que era triste
Descrente deste mundo
Ao encontrar você eu conheci
O que é felicidade
Meu amor
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