Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde
Mário de Carvalho
Caminho, 1994, 327 págs.,16€
“Quatro mil, cinco mil anos de história (que se conta a partir dos primeiros registos escritos) é um período muito curto na existência da humanidade. O homem contemporâneo, o medieval ou o romano são o mesmo homem.” Mário de Carvalho (numa entrevista de Luís Souto, em 2002, para o jornal “A Página’’). Na mesma entrevista, o autor admite ter “tido particular interesse pela antiguidade clássica – Roma”, o que aliás se verifica pelas obras “Quatrocentos Mil Sestércios” (1991) e, claro, “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde”.
A história desenrola-se na pequena Tarcisis, na Lusitânia, que está nesta altura sob a alçada do Império Romano. Lúcio Valério Quíncio escreve ,do exílio, relembrando o seu mandato como duúnviro da cidade: “Pode ser que, escrevendo, se me apazigue o espírito […] porém, que este livro sirva de lição a quem o ler.”
Tradicionalmente, o duúnviro era um magistrado romano que exercia um cargo em conjunto com outro magistrado; no entanto, logo no ínicio do relato de Lúcio, morre Gaio Cecílio Trifeno, com quem dividia funções. Os restantes notáveis da cidade mostram-se reluctantes em sucedê-lo, pelo que Lúcio Quíncio passa a ser o único duúnviro da cidade. A narração de Lúcio, na primeira pessoa, descreve a série de peripécias que acabam por levar ao seu afastamento do duúnvirato e da cidade.
Após receber rumores de um possível ataque dos mouros, Lúcio decide averiguar. Nas suas variadas investigações conta com a ajuda de Aulo, seu leal centurião, e com os sábios conselhos da sua mulher, Mara.
Com o pretexto de inspeccionar a condiçao das defesas da cidade, Lúcio, algo imprudentemente, sai uma noite para explorar as muralhas. É a partir deste momento que ele começa a aperceber-se de que não conhece tão bem a cidade como pensa – a noite esconde as actividades do povo; entre elas, as reuniões secretas na taberna de Rufo Glicínio Cardílio, um liberto (de classe social inferior) demagogo que agita a opinião pública, e os estranhos ritos de um grupo religioso que se identifica pelo símbolo do peixe.
Entretanto, Tarcisis é uma cidade preguiçosa, e tanto o povo como os nobres desdenham a hipótese de um atentado à paz e não levam a sério as recomendações do duúnviro. Este é obrigado a governar rigidamente, estoico nas suas regras e medidas e pouco interessado na opinião de outros. A este descontentamento, acumula-se a morte de um cidadão bem amado do povo e a descoberta de que os ritos cristãos se passam na casa de Máximo Cantanber, amigo de Lúcio. Todas estas circunstâncias vão contribuir para um crescente mal-estar e para a subversividade dos cidadãos, culminando nas acções inesperadas do duúnviro e no seu subsequente afastamento da cidade.
Várias vezes, ao longo do livro, Lúcio interroga-se sobre as suas decisões e a sua integridade, acabando quase sempre por se render à inevitabilidade do destino: “ Estaria eu a perder qualidades de cidadania? E foram, naquele instante, evocados alguns desvios, un maiores, outros menores […] Apesar de tudo, dei-me graças, por notá-los eu, antes que alguém mos apontasse, o que não haveria de tardar muito.” Lúcio, com o seu racionalismo e intransigência, vê-se regularmente confrontado com a contradição daquilo que ele pensa que dele é esperado, e, o que, na realidade, não é essencial que seja o que o povo quer. A certa altura é interrogado pelo comandante de uma legião: “ […] Não vai o povo assistir? Não se fazem apostas? Não há claques e entusiasmos? […] Não exulta a plebe, de modo a ficar contente e grata?” ao que Lúcio responde: “ Eu limito me a administrar justiça, em nome do Senado e do Povo…”
A história é surpreendentemente moderna e simples; rica em ironia, vocabulário e pormenor descritivo. Desmonstra um notável domínio da lingua portuguesa e arte na manipulação da plasticidade da linguagem. Ao íncio é possível sentir-se alguma dificuldade em entrar no discurso pouco usual e muito ‘romano’ que o autor utiliza; não obstante, a história é absorvente, e, em partes, muito emocionante. Por entre as divagações de Lúcio e os relatos da vida de Tarcisis, surgem passagens de grande simplicidade e beleza: “ Com recato […] procedi a um sacrifício propiciatório, no jardim, consagrando um pequeno bezerro branco coberto de flores, ao deus que tomava a brisa da tarde, para que não abandonasse os seus fiéis […].”
Não deixa de ser interessante este escrutínio, visto de uma perspectiva invertida, dos hábitos cristãos ainda tão comuns nos dias de hoje; além disso, os paralelismos com a política corrente, em que os ideais são igualmente complexos e difusos, dão o mote para alguma reflexão.Um livro belíssimamente bem escrito, que só peca por, nalgumas ocasiões, devido à linguagem pouco usual, sentir-se a perda de algumas informações ou de algum sentido que, evidentemente, enriqueceria a leitura.
“Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde” recebeu, em 1994, o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio Fernando Namora.
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