Chuva
Foi um dos primeiros dias em que levou o seu cão a passear, agarrado por uma trela preta inexperiente e tão pequeno e magro que o perdia de vista entre a passagem das pessoas na rua. Ia com a Assunção, vinham a descer da esquina que cruza a suas casas e andávam trapalhonas com conversas e cigarros, o coitado do cão a ser puxado e a puxar até lá abaixo, onde o pegou ao colo para dentro do café. Lembro-me vagamente de ser inverno, deduzo pela Assunção que sei que estava com um casaco grande, daqueles que se levam para a neve. Passaram a tarde toda a jogar king, a Maria com o cão ao colo; estava amoroso, cheio de medo do barulho das chávenas, o fumo todo concentrado e as luzes fluorescentes e eles a rir e a gritar.
Ela defendia-o do gozo dos amigos, tão parvos, que comentavam a magreza- “Ai, coitadinho, ‘ta cheio de fome!”; diziam que era ridículo, deprimido, com cara de fome, com ar de estúpido.
A Sofia não concordava: “Esse cão fica-te bem.”
“Ele é uma atleta”, disse-lhes ela, “não tem de ser inteligente!”
Aquele cão é da marca mais rápida do mundo. Tudo bem, tem uma orelha mais curta que a outra que está sempre levantada e uns olhos pretos muito redondos e abertos – fá-lo parecer que está sempre surpreendido.
Hoje em dia perguntam por ele de vez em quando. Também, a Maria já os vê pouco; ou em saídas á noite, ou a descer a calçada e quando vê a conversa é sempre mole, como se a tentativa de serem amigos como dantes já estivésse esgotada de cansaço, incapaz de sobreviver apesar dos SMS e chats e todo esse aparato desenhado para nos dar a ilusão de termos centenas de amigos muito fixes e bronzeados. É sempre Verão nas fotografias que se publicam na ‘net’.
Na volta do café, já de noite, a Assunção, eu e o cão subimos a calçada, já muito cansadas, vinhamos cada uma na sua, em silêncio concentradas na subida e no cão, que estava chato, insistia em meter-se para o lado dos carros. Começou a chover, e lembro-me de ter dito qualquer coisa, desejosa de chegar a casa. ‘
- Odeio esta chuva molha-parvos
E a Assunção respondeu, muito séria, (para minha surpresa, esse tipo de manifestações eram raras nela),
- Eu gosto, parece que me lava a alma.
De vez em quando, quando chove, lembro-me disso.
Foi um dos primeiros dias em que levou o seu cão a passear, agarrado por uma trela preta inexperiente e tão pequeno e magro que o perdia de vista entre a passagem das pessoas na rua. Ia com a Assunção, vinham a descer da esquina que cruza a suas casas e andávam trapalhonas com conversas e cigarros, o coitado do cão a ser puxado e a puxar até lá abaixo, onde o pegou ao colo para dentro do café. Lembro-me vagamente de ser inverno, deduzo pela Assunção que sei que estava com um casaco grande, daqueles que se levam para a neve. Passaram a tarde toda a jogar king, a Maria com o cão ao colo; estava amoroso, cheio de medo do barulho das chávenas, o fumo todo concentrado e as luzes fluorescentes e eles a rir e a gritar.
Ela defendia-o do gozo dos amigos, tão parvos, que comentavam a magreza- “Ai, coitadinho, ‘ta cheio de fome!”; diziam que era ridículo, deprimido, com cara de fome, com ar de estúpido.
A Sofia não concordava: “Esse cão fica-te bem.”
“Ele é uma atleta”, disse-lhes ela, “não tem de ser inteligente!”
Aquele cão é da marca mais rápida do mundo. Tudo bem, tem uma orelha mais curta que a outra que está sempre levantada e uns olhos pretos muito redondos e abertos – fá-lo parecer que está sempre surpreendido.
Hoje em dia perguntam por ele de vez em quando. Também, a Maria já os vê pouco; ou em saídas á noite, ou a descer a calçada e quando vê a conversa é sempre mole, como se a tentativa de serem amigos como dantes já estivésse esgotada de cansaço, incapaz de sobreviver apesar dos SMS e chats e todo esse aparato desenhado para nos dar a ilusão de termos centenas de amigos muito fixes e bronzeados. É sempre Verão nas fotografias que se publicam na ‘net’.
Na volta do café, já de noite, a Assunção, eu e o cão subimos a calçada, já muito cansadas, vinhamos cada uma na sua, em silêncio concentradas na subida e no cão, que estava chato, insistia em meter-se para o lado dos carros. Começou a chover, e lembro-me de ter dito qualquer coisa, desejosa de chegar a casa. ‘
- Odeio esta chuva molha-parvos
E a Assunção respondeu, muito séria, (para minha surpresa, esse tipo de manifestações eram raras nela),
- Eu gosto, parece que me lava a alma.
De vez em quando, quando chove, lembro-me disso.